Depois de ser atacada duas vezes, pensava estar imune a outro ataque. Acreditava que tinha aprendido me prevenir. Sempre examinava minhas roupas antes de me vestir, esquadrinhava os ambientes em que eu ia entrar e mantinha minha casa livre de insetos. Com isso, relaxei e me dei mal.

O terceiro ataque foi na hora que eu estou mais vulnerável: de manhã. Aconteceu assim:

Na época eu tinha um carro velho que prefiro não falar a marca nem o modelo. A parte mecânica do carro funcionava bem, mas tinha alguns defeitinhos. Um dos defeitos era que a janela do motorista não fechava até o fim, ficava exatos 2 dedos aberta. Coloquei as crianças e suas mochilas dentro do carro, abri o portão, entrei no carro e quando já estava na rua aparece no parabrisa uma maldita lagartixa. Pra piorar ela era transparente. Eu nunca tive coragem de olhar diretamente uma lagartixa e agora tinha uma no parabrisa do meu carro correndo de um lado para o outro desfilando sua transparência e me deixando apavorada de medo que ela entrasse pelo vão da janela. Não queria assustar as crianças e ao mesmo tempo não podia fingir que estava tudo bem com uma lagartixa enlouquecida com a possibilidade de ir para a escola, e além do mais as crianças sabiam que eu tinha medo de lagartixa. Dirigia bem rente a calçada, na esperança que um galho de árvore a arrancasse dali, mas ao mesmo tempo esse mesmo galho poderia forçá-la a entrar pelo vão da janela que eu tentava em vão fechar. Nessa tentativa de me livrar da lagartixa eu desviava do meu caminho habitual e as crianças não paravam de falar que iam chegar atrasados. Eu não podia simplesmente descer do carro sem me livrar da lagartixa, pois nunca teria certeza se ela havia entrado pelo vão da janela ou não. Em um ponto de ônibus que tinha muitas pessoas eu parei e comecei a gesticular pra chamar a atenção de alguém pois a buzina também não funcionava. Um trabalhador que estava esperando o ônibus veio me ajudar, acreditando que eu queria uma informação. Apontei a maldita e fiz um gesto com as duas mãos juntas e a minha cara de pavor. O pobre homem levou um susto, mas não me desapontou, pegou a maldita pela cintura e jogou no meio da rua. Que alivio! Tive vontade de dar um abraço no meu herói, mas só falei um muito obrigada do fundo do coração. Voei pra escola, lamentando não poder descer pra dar um abraço na pessoa que me salvou. Eu estava de camisola.
Cassandra é uma mulher organizadíssima e metódica ao extremo. Ela é daquelas que fazem lista de supermercado em três vias. Sua casa é um modelo de perfeição que nenhuma sogra ousaria criticar. Na cozinha, seu armário de potes plásticos se parece com o catálogo da Tupperware: todos estão com suas respectivas tampas e expostos por ordem de tamanho e formato. As gavetas de tampas, talheres e panos de prato segue a mesma ordem, assim como todas as outras dependências da casa. Visitar esta casa é como estar dentro de uma revista de decoração. Todo esse empenho é acompanhado de discursos sobre a importância de manter tudo em ordem e severas críticas aos seus três filhos e o marido por não valorizarem tanta organização.

Sua casa não é só organizada, é imaculadamente limpa. Micróbios e bactérias são a sua obsessão. O primeiro Vaporetto vendido no Brasil foi Cassandra que comprou, é como se fosse uma extensão do seu braço. Comprou também máquina de lavar louça, não por comodidade, mas porque ficou sabendo que além de lavar, também esteriliza a louça.

De ácaro tem um ódio mortal, tanto que gostaria de um confronto pessoal como do Batman e Pinguim.

Quando percebe que alguém da família vai tomar banho, ela literalmente avança nos seus pés e arranca suas meias, pois não admite a hipótese de lavar os pares de meias separados, para que não se extravie um pé da meia. Todo mundo já teve pelo menos um pé de meia, inexplicavelmente extraviado, já faz parte do nosso cotidiano. Alguém até já escreveu uma história explicando que as meias perdidas vão para o Reino Perdido do Beleléu, mas nesta família não existe a menor chance disso acontecer.

Cassandra não se senta para as refeições com a família, fica rondando à mesa e ao menor descuido: vapt, tira o prato, os talheres e o copo pra lavar, sabe-se lá se é de medo das sobras entrarem em decomposição. Em sua opinião, além de uma refeição balanceada a higiene na cozinha é fundamental.

Com todos estes cuidados a família raramente adoece, mas quando isto acontece o médico é bombardeado com perguntas referente a causa da doença que está sendo tratada e suas possíveis complicações. Logicamente os cuidados são redobrados.

Cassandra lê tudo sobre saúde. Conhece de cor todas as doenças, as virais e bacterianas. Das doenças virais sabe toda forma de contágio. A propósito disto também faz discurso para a família. Ninguém reclama mais, não adianta. Seu marido apenas balança a cabeça e sorri.

Enfim as crianças cresceram e foram embora cuidar das suas próprias vidas. Um dos meninos hoje é médico. Um dia ele mostrou um ácaro para sua mãe no microscópio, ela ficou impressionada! E pensar que ela tinha lutado tanto (e vencido) com este tipo de monstro cheio de pernas. Seu outro filho trabalha com estatística. A sua filha casou-se com um médico e mora num destes países subdesenvolvidos fazendo trabalho filantrópico. Escreve longas cartas contando tudo sobre seu trabalho e finaliza falando que sua mãe não viu nada de vírus e bactérias comparando com o que eles têm lá.

Seu marido também foi embora com Larissa, uma jovem que usa um piercing no umbigo e outro na sobrancelha, algumas tatuagens e um topete azul. Larissa não sabe a diferença entre um vírus e uma bactéria.

Hoje Cassandra dá cursos e palestras sobre método e organização para mulheres como eu, como você. Eu por exemplo, faço minha lista no carro, a caminho do supermercado. Espero que isso não acrescente pontos na carta de motorista. Meu armário de potes plásticos é um caos, que é uma sorte quando alguém consegue encontrar um pote e sua tampa. Minha casa é muito limpa, mas desconsidero a existência de germes e bactérias. Quanto as meias eu acho que deveria haver uma lei obrigando aos fabricantes de meia incluírem um pé a mais em cada par.

Guardem bem este nome: Cassandra. Qualquer dia nós vamos assistir a uma entrevista dela no Programa do Jô, divulgando os livros sobre Organização e Método que com certeza ela está escrevendo.

Abril de 1.998
Vocês já sabem que eu não sou medrosa, mas não quero que pensem que tenho mania de perseguição. Sou perseguida mesmo.

O segundo ataque aconteceu assim: eu estava sentada na varanda encapando os cadernos dos meus sobrinhos. Como não tenho mania de perseguição, não examinei as paredes e o teto antes. Distraída entre cadernos, plásticos e durex não percebi que havia uma atividade sexual travada por criaturas monstruosas logo acima da minha cabeça. Meu cabelo era bem comprido. Muito cabelo e crespo. O lugar ideal para duas lagartixas apaixonadas. Elas se atiraram no meu cabelo e eu disparei para o quintal gritando. Até aquele dia eu acreditava que a dona Laurinda, a senhora que trabalhava para a minha irmã, era a mulher mais corajosa que eu conhecia. Acreditava também que ela me amava muito. Duas decepções no mesmo dia. Ela não enfrentou os monstros e ainda riu muito da minha situação. Meus sobrinhos ficaram apavorados, no começo sem entender o que estava acontecendo, depois entendendo e assustados.

Não tenho certeza como as malditas caíram talvez os meus gritos tenham esfriado o entusiasmo e elas tenham resolvido procurar um lugar mais tranqüilo. Estava aliviada por ter me livrado das monstruosas criaturas, decepcionada com a dona Laurinda e com nojo do meu cabelo.

Passei a tomar mais cuidado, examinava sempre as paredes e o teto antes de entrar em algum lugar, mas isso não impediu O TERCEIRO ATAQUE.
O casamento tem significado diferente para homens e mulheres.

Para a mulher significa ficar mais tempo junto da pessoa amada, liberdade pra praticar sexo e a segurança de ter um herói para defendê-la em caso de necessidade.

Para o homem significa ter alguém exclusivamente para cuidar do seu bem estar, das suas roupas, suas coisas e preparar seus pratos prediletos. De preferência alguém que não exija atos de heroísmo. Significa também a perda da liberdade sexual.

No começo do casamento a mulher até gosta de brincar de casinha, organizar a gaveta de meias, organizar os papéis do marido. Como a mulher moderna não faz curso de culinária, os pratos prediletos dele passam a ser o terror do casal.

O homem gosta de ficar com os amigos e não ter hora de voltar pra casa, o que entra em conflito com a vontade da mulher que é ter o amor da sua vida sempre a seu lado.
Nas primeiras vezes que o marido chega tarde, encontra a mulher na maior crise, dividida entre pensar que seu amor sofreu um acidente, ou que ele está numa boa com seus amigos e nem se preocupou em avisar. As duas hipóteses a aterrorizam igualmente.
É claro que não aconteceu nenhum acidente, é claro que ele estava com os amigos e é óbvio que ele não imaginou que precisava avisá-la.
Depois de convencê-lo que deveria ter a consideração de avisar toda vez que precisasse demorar, que não deveria preferir ficar com os amigos, ela o perdoa, acreditando que está tudo resolvido.

Depois de muitas recaídas, ela não pensa que aconteceu um acidente, torce por um. Não um acidente fatal, mas umas costelas quebradas e uns arranhões já servem.
Enfim o jeito é se acostumar com este hábito do marido e arranjar uma distração: gato ou cachorro? Como cachorro é o melhor amigo do homem a opção é um gato. Enquanto é novidade, tudo bem, mas com o tempo e o temperamento independente do gato, isto não a satisfaz, então ela chama o marido para conversar sobre a relação. Nesta conversa ela se expõe por completo: se queixa da solidão, da decepção e critica o comportamento dele. Ele aproveita pra criticar a comida dela, o seu gato e diz que se sente sufocado. Ninguém fala em separação, ambos procuram uma solução. Decidem que o que está faltando é um filho.

Começam o planejamento: escolha do médico, exames, escolha do hospital, da decoração do quarto, a compra do enxoval, decidir quem serão os padrinhos. Enquanto ela está envolvida nestas atividades quase nem percebe que ele continua na mesma vida de sempre.
Nasceu o bebê! A felicidade é total, compartilhada com avós, tios e amigos. O pai se sente muito importante e responsável. A mãe acha que é a melhor coisa que podia acontecer. Enquanto é novidade, tudo bem, mas com o tempo ela percebe que não é brincar de boneca, é dedicação em tempo integral. O marido aproveitando a nova ocupação da mulher continua com os velhos hábitos e mais alguns. Ela cada dia mais apaixonada pela criança, preocupada com sua nova aparência modificada pela gravidez e totalmente sem esperança que seu marido dedique tempo integral à família pede conselho pras amigas. Umas dizem que ela deve se conformar, pois casamento é assim mesmo e poderia ser até pior. Outras dizem que ela deve procurar uma ocupação, uma distração. Outras radicalizam, dizendo que ela deve se separar. Nem um dos conselhos satisfaz. Conformar-se, jamais, distração e ocupação para quem tem criança pequena é quase impossível e separação na sua opinião é quando não se ama mais ou em caso muito grave. Uma nova gravidez! Que idéia genial! Com dois filhos vai ser uma família de verdade. Mais responsabilidade, menos tempo pra farra. O primeiro filho foi uma decisão dos dois, mas esta gravidez deverá ser uma surpresa.

O marido dividido entre o trabalho, os amigos e o filho nem percebe que a barriga dela está crescendo, afinal ela já estava gordinha. Quando ele percebe, quase não acredita e demonstra claramente que está chocado e não surpreso por ela ter decidido ter um filho sem consultá-lo. Ela surpresa com a reação dele fala que foi sem querer, que o anticoncepcional falhou e que quando percebeu, ficou com receio de contar.

Nasce o segundo bebê. Que bom que ele é saudável. Que pena que ela está mais gorda. Fraldas, mamadeiras e o inevitável ciúme do irmãozinho. Muito trabalho para a mãe, mais responsabilidade para o pai que descobriu que para ter um tempinho com os amigos é só diminuir o tempo com a família. Afinal uma casa com duas crianças pequenas e uma mulher rabugenta não é atrativo para nenhum marido.
Ela percebe que a idéia não foi tão boa assim, mas está totalmente apaixonada pelas duas crianças.

Hoje eles estão separados e ela está brigando por aumento de pensão pras crianças. Quanto mais dinheiro ele investir nos filhos, menos vai sobrar pra farra.
1.990
TIO PERCIVAL

Todo mundo conhece alguém como meu tio Percival.

Ele nunca teve a carteira profissional assinada: ninguém nunca foi meu dono! Gosta de se gabar. Eu trabalho é com a cabeça, é outra frase predileta. Vive de intermediar vendas. Entende de quase tudo, pois lê todos os jornais, assiste todos noticiários. É sempre consultado sobre os mais diversos assuntos. Está sempre disponível para acompanhar alguém em viagem ou no hospital, levar documentos, entregar convites. Adora resolver problemas por telefone fazendo-se passar por advogado.

Gente como tio Percival geralmente não se casa e quando se casa é com alguém tão sem personalidade que ninguém consegue lembrar o seu nome. É preciso tomar cuidado com pessoas como ele, pois estão sempre com tempo livre e como são observadoras e acham que sabem de tudo, gostam de dar palpites até no tempero da comida de quem está cozinhando.

Sempre muito simpático,tio Percival faz questão de estar bem com todo mundo, pois sempre precisa de um fiador, um empréstimo em dinheiro ou de um carro. Pessoas como ele nunca ficam rica, sempre tem o mínimo necessário pra viver.

Tio Percival tem sempre um ótimo negócio em vista, mas falta capital e quem o conhece não está disposto a financiá-lo. Estas pessoas ele define como “sem visão”.
Ele é sempre convidado para todo tipo de festa de família, desde batizado até bodas. Não gosta de amigo secreto, talvez porque seja obrigado dar presente.

Algumas pessoas acham que esse negócio de trabalhar com a cabeça seja pretexto pra quem não tem coragem de trabalhar.

Este ano a festa de natal da família vai ser na minha casa, já confirmaram presença o tio Percival e, como é mesmo o nome da mulher dele?
1.997
Não sou uma pessoa medrosa, mas coragem tem limites. Um dos meus limites é lagartixa. Até o nome é aterrador, mas não pensem que me preocupo com elas 24 horas por dia, apenas quando alguma resolve visitar a minha casa ou me atacar. Não gosto que as pessoas se arvorem em defensoras desta praga, dizendo que elas “limpam” a casa caçando insetos. Pra que existe inseticida? Insistem em dizer que elas não fazem mal a ninguém. A mim faz, elas me perseguem. Três vezes fui atacada por estes monstros, nem sei como sobrevivi.

A minha primeira vez foi no cinema. Eu tinha dezessete anos. Fui com minha irmã e meu cunhado visitar minha outra irmã que tinha se mudado para outra cidade. Isso deveria bastar, mas a minha irmã quis ir ao cinema. Deixei minha roupa separada em cima da cama, enquanto tomava banho. Era um vestido abotoado na frente até a cintura e com um cinto largo.

Quando nos sentamos no cinema e a luz se apagou, senti uma coceira nas costas na altura de cintura. Cocei. Toda hora sentia como se tivesse um fiapo ou um fio de cabelo me incomodando. O filme começou e eu não conseguia prestar atenção, por que tinha que sentar na ponta da cadeira pra me coçar. Minha irmã já estava incomodada com a minha falta de modos. A comichão estava aumentando e pedi pra minha irmã coçar pra mim. De má vontade, olhando pra tela ela deu uns apertões e ainda falou que iam pensar que ela estava dando corda em mim. Não achei a menor graça, principalmente porque depois dos apertões dela a situação piorou. Sem falar nada, peguei-a pela mão e a levei ao banheiro. Ela não estava entendendo nada. Eu estava apavorada, pois sabia que alguma coisa viva estava debaixo do meu vestido. Devo ter falado isso pra ela. Mal entramos no banheiro, antes mesmo de fechar a porta eu tirei o vestido e joguei no chão, lá estava a infeliz avariada, principalmente pela inabilidade da minha irmã. O que era suspeita se transformou em uma terrível realidade: uma lagartixa horrorosa tinha entrado no meu vestido enquanto eu tomava banho, e ficou presa no cinto. Claro que eu gritei, chorei assustando as moças que tinham se enfiado no banheiro pra fumar. Claro que a minha irmã morreu de rir. Eu não queria mais vestir o vestido. Na verdade não queria minhas costas também. Minha irmã estava muito empenhada em continuar assistindo o filme e não ficar com uma pessoa histérica e nua no banheiro. Fingindo se importar comigo revistou o meu vestido e livrou-se dos vestígios da praga tentando me convencer a colocar o vestido. Toda hora entrava alguém no banheiro e ficava sem entender o que estava acontecendo, pois a estropiada tinha se evadido toda ofendida. Sem alternativa vesti o vestido e voltamos pro cinema. Não tenho a menor idéia que filme estava passando, também não sei se ficamos até o final. Provavelmente fomos embora antes do final, pois minha irmã estava ansiosa pra contar o que ela chamou de vexame.
Agora me digam que inseto a maldita estava caçando dentro do meu vestido que eu tirei da mala, passei e coloquei esticadinho em cima da cama?
31/12/09

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