JORGE
            Quanto mais ele conhecia Janaína, mais ele a admirava. Uma jovem pobre, trabalhadora e nada interesseira. Que pena  ela não ter celular. Tinha tanta vontade de ficar mandando mensagem pra ela como via seus filhos fazerem.  O Junior conseguia até brigar por mensagem! Mas com a Janaína ele nunca teria motivos pra brigar. Gostaria de falar com ela a hora que quisesse sem ter que esperar ela ligar. Mas ela era uma filha obediente, então era melhor se conformar.
            Quanto mais qualidade ele via em Janaína, mais ele implicava com a mulher. Sempre que podia se referia a ela como “uma senhora”. Irritava-se com os cuidados que ela tinha com ele: Sempre perguntando se tinha tomado o remédio de pressão alta, falando pra não sentar de costas pra janela, por causa do vento, lembrando a data da consulta com o cardiologista, aquele médico alarmista. Mal sabia ela que ele estava no auge do seu  vigor! Outra coisa irritante era agüentar as piadinhas dos empregados no futebol. Idéia do metido do Adalberto: confraternizar com os funcionários! Formaram até um time. Tudo bem antes de conhecer Janaína, que ele tinha poucas opções de divertimento, mas agora tinha mais o que fazer. Se perdia um gol, ou dava um passe errado, os engraçadinhos ficavam perguntando se o velho estava cansado, se estava com dor  nas varizes, se a barriga estava atrapalhando, um atrevimento! Perguntem pra Janaína quem é velho! Helena sim é velha. Sempre os mesmos assuntos: Renoir, Picasso, da Vinci. Quem liga pra esses caras que morreram faz tempo? Que não fariam falta se nem tivessem nascido. Vivia arrastando ele pra teatro, concerto. Quando começaram namorar, tudo bem ir pra conhecer, mas fazer disso um hábito já era querer demais. Ir ao cinema assistir filme de ação já estava mais do que bom. Helena ficava desesperada quando lia a notícia que tinham roubado algum quadro de algum museu ou galeria. Jorge ficava chocado de saber que alguém pagava por uma coisa daquelas e o que é pior: se arriscar a ser preso por roubar um quadro que tinha certeza, a dona Genoveva faria melhor.


Jorge também não entendia porque Helena fazia tanto sucesso nas reuniões de amigos. Ela estava sempre rodeada de gente conversando animadamente, e todo mundo prestando atenção ao que ela falava.  Um amigo até elogiou o novo corte de cabelo. Disse que a cor tinha ficado ótima, que combinava mais com ela.  Novo corte? Nova cor?  Afinal indo tanto ao cabeleireiro... Na idade dela tinha que apelar pra estes recursos, coitada. Ah, se essa gente conhecesse Janaína! Beleza natural!
Ficava imaginando Janaína entrando e todo mundo olhando de boca aberta: Morena, calça justa, barriguinha de fora, cabelo solto, não, melhor preso, é muito armado. Tamanco alto, unhas pintadas de vermelho, brinco de argola enorme. Se Janaína entrasse ninguém nem olharia mais pra Helena. Mas isso seria impossível, então o jeito era tomar outro uísque e agüentar o olhar de reprovação da Helena. Dane-se.

TIANA
Apesar de não amar Raimundo e ele ser mais velho, feio e grosso, Tiana estava contente. Afinal ela não ia casar, só morar junto. Ia fazer um pé de meia e depois, quem sabe...
Tão logo Raimundo falou que tinha alugado casa ela ensacou as suas roupas  e as da Jucimara, e de nariz empinado despediu-se da parenta, não sem antes convidá-la para um chá como via as mulheres ricas fazerem nas  novelas.
Casa foi o que Raimundo falou, mas depois de passear por duas horas no caminhão com Jucimara enlouquecida pela novidade chegaram num bairro de periferia, numa rua sem asfalto, num quintal com vários cômodos, muitas crianças e muitos cachorros. A primeira coisa que Tiana pensou, foi que teria que cancelar o chá com a parenta, a segunda foi que deveria ter esperado um pouco mais pelo príncipe encantado.
Todo mundo do quintal conhecia Raimundo, todo mundo tinha sotaque e todos foram muito simpáticos com ela. Não era de todo mau. Até ela ver onde iam morar: um quarto e cozinha com mobília velha. Decididamente ali a parenta não tomaria chá. Raimundo nem percebeu sua decepção, ou se percebeu nem se importou, ele não era homem de aturar frescura de mulher.
Jucimara adorou ter tanta criança pra brincar e nenhuma regra. Na casa da parenta não podia correr nem gritar, coisas que aqui todas as crianças faziam o tempo todo.
Tiana acomodou as suas roupas e as de Jucimara o melhor que pode e pediu para Raimundo trazer a roupa dele pra ela arrumar, mas ele falou que só tinha uma sacola com algumas trocas no caminhão, nem precisava guardar, pois ele ia pegar estrada dentro de dois dias. Tiana estranhou, mas tinha uma casa pra cuidar, precisava limpar, fazer a janta. Raimundo ficou de bate-papo com o pessoal do quintal, bebendo e rindo, enquanto Tiana que já tinha terminado a arrumação e sem ter mais o que fazer não sabia se chamava Raimundo pra jantar ou se ia lá fora conversar.  Não o conhecia  bem pra saber se ele ia se importar com qualquer atitude que ela tivesse. Decidiu ir lá fora, pois ouviu música do tipo que ela ouvia lá na sua terra. Raimundo não  achou ruim por ela aparecer lá no quintal, até ofereceu bebida, apresentou pros conhecidos. Parece que eles aprovaram a escolha do Raimundo. Logo todo mundo tava dançando, comendo lingüiça assada numa churrasqueira de lata e bebendo caipirinha. Nada mal seu primeiro dia de juntada! A primeira noite também não foi ruim. Com tanta caipirinha e dança Raimundo não pareceu tão feio, nem tão velho. Jucimara dormiu na casa de alguma vizinha e Tiana depois de longos anos dormiu com um homem... sem proteção novamente. Mas agora ela não devia satisfação a ninguém, nem a sua mãe nem a parenta.


HELENA
Helena não tinha ido ao cabeleireiro e nem tinha falado que iria, mas dona Genoveva adorava dar essa desculpa quando ela não estava em casa e Jorge sempre acreditava. Hoje ela tinha saído como em todos os dias para ir ao trabalho, mas entre um cliente e outro tinha ido se encontrar com Roger. O encontro foi maravilhoso, Roger entregou mais um  presente que tinha comprado na última viagem e como sempre insistiu que ela se separasse de Jorge. Ele não se conformava que uma mulher como Helena conseguia viver com um homem tão rústico como Jorge. Nem uma das justificativas que ela dava satisfazia. Ele queria mesmo era ela só para si.
Era uma pena que perdessem tempo discutindo a rusticidade de Jorge ou a importância do seu casamento, mas era o preço por ter um envolvimento assim.

JORGE
Apesar de estar feliz com o relacionamento com Janaína, Jorge queria mais. Sabia que não poderia viver com ela, pois a mãe conservadora não permitiria. Divórcio estava fora de cogitação, pois tinha certeza que seria chutado da fábrica por Adalberto e Helena. Mas ter uma mulher como Janaína e não exibir era de matar!  
Como e pra quem, passou a ser a preocupação de Jorge. Todo mundo que ele conhecia, tinha a ver com a fábrica e conseqüentemente com Adalberto e Helena. Os amigos de fora da fábrica eram do tempo que era um simples operário e com o envolvimento com a fábrica essas amizades foram ficando para trás. Retomá-las só para exibir Janaína não seria uma boa idéia.
Jorge estava com muita pena de Janaína, pois sua tia estava prestes a fazer uma cirurgia e ela bondosa como só ela conseguia ser estava angariando fundos para pagar o médico. É claro que ele ia colaborar, mas estava cada vez mais difícil justificar as retiradas de dinheiro da fábrica. Deus me livre ter que se explicar pro Adalberto!
Com estas preocupações na cabeça, seu telefone tocou e era Clara, sua filha pedindo que ele aumentasse o limite do seu cartão de crédito, pois precisava comprar umas “coisinhas”. Indignado ligou no celular da Helena, mas estava desligado. Ligou em casa na esperança que sua mulher estivesse lá, mas a empregada atendeu e falou como era seu hábito, que dona Helena estava no cabeleireiro. Jorge estava furioso, sem paciência pra família. Não se conformava da mulher ir tanto ao cabeleireiro e estar sempre do mesmo jeito. Ninguém tinha limite naquela família, todos pensavam que dinheiro dava em árvore! O Jr então, só estudava, uma interminável e cara faculdade. Já tinha destruído vários carros e Helena ainda dizia que era “fase”. As fases dos seus filhos só davam prejuízo. Queria ver se eles tivessem uma vida dura como a Janaína, ou como a dele. Mas hoje ele ia ter uma conversa séria com a mulher sobre o limite do cartão da Clara. A Janaína não ia mesmo ligar, pois estava envolvida  com a cirurgia da tia, então o jeito era ir logo pra casa resolver este assunto.
    Chegou antes de Helena que chegou a casa com umas sacolinhas de supermercado. Não tem nada mais inocente e doméstico que uma mulher chegar a casa com sacolinhas de mercado. Jorge ficou desarmado quando viu que Helena havia comprado seu queijo predileto e as frutas que ele tanto gostava, que se esqueceu de reparar no seu cabelo. Decidiu abordar o assunto limite do cartão sem muita agressividade.  Quando ele começou a falar do pedido da Clara e que não via necessidade de aumentar o limite, Helena logo cortou a conversa, dizendo que a filha tinha começado um curso e precisava de umas “roupinhas” coisa natural na idade dela e de acordo com o nível social da família. Jorge desistiu de discutir. Se não fosse as frutas e o queijo ele diria quantos parafusos seria preciso vender pra comprar as “roupinhas” da Clara.  Amanhã ligaria para o gerente.

      TIANA
Tiana nasceu pobre numa família de doze filhos no sertão da Bahia. Muito jovem engravidou de um dos garotos pobres como ela, com os quais ela se divertia. Nasceu Jucimara e sua mãe aproveitou o pretexto para mandá-la para o sul morar com uma prima distante.
Foi uma experiência terrível, pois para pagar sua estadia, tinha que trabalhar e muito para a parenta, além de cuidar de Jucimara, que não era uma criança fácil. Morria de vontade de sair pra dançar e namorar. Tinha saudade da liberdade que tinha no sertão, mas a parenta não facilitava, sempre alertando do perigo de engravidar novamente. Sem contar que a parenta não tomaria conta de Jucimara pra Tiana se esbaldar.
Foram quatro anos de sacrifício, trabalhando em troca de casa e comida pra ela e a filha, até conhecer Raimundo um caminhoneiro nordestino que se interessou por ela e a convidou para morar com ele sem se importar por ela já ter uma filha.  Ela aceitou de pronto, já imaginando uma boa vida, tendo sua própria casa, conta no banco, talvez até aprendesse dirigir...  foi com este espírito, e de nariz empinado que ela deu a notícia pra parenta. Claro que a parenta disse que ela estava sendo ingrata, mas não ia fazer nada pra impedir, que se Tiana quebrasse a cara  ela não a aceitaria de volta! Dito isso a parenta ligou pra Bahia e encomendou outra para substituir Tiana.

JANAÍNA
Janaína tem vinte e três anos, trabalha em um supermercado de bairro e está apaixonada.  Infelizmente é um amor impossível, pois ele é pobre! Sua mãe não pode nem sonhar que ela se encontra com Mateus. Tem que viver se escondendo como uma criminosa, pra poder namorar. E o pior é que Mateus nem se incomoda com a situação. Acha que sua mãe está certa em querer que ela dê o golpe no velho.
Até conhecer o Mateus, tudo bem em se aproveitar da ingenuidade do velho babão. Era divertido contar histórias tristes da sua vida, reclamar do padrasto, dizer que sua mãe era conservadora e que sonhava vê-la casando de véu e grinalda. Ele ficava tão apavorado com a possibilidade de perdê-la, que a recompensava generosamente.  Terrível era ter que sorrir ouvindo as intermináveis e chatas histórias de como ele começou por baixo e foi subindo por merecimento. Ouvi-lo falar do preço do aço, de encrencas com funcionários e blá, blá, blá. Era conversa que não acabava mais. 
Janaína inventou que sua mãe não poderia saber sobre o seu relacionamento com Jorge, pois assim ela tinha desculpa para ficar algum tempo sem se encontrarem, mas a mãe logo a pressionava com medo de perder a galinha dos ovos de ouro.  Dizia que com o dinheiro que ele tinha se ela não se empenhasse, outra espertinha ia se candidatar. Aí ela ligava de um telefone público e dizia que estava com saudade, carente ou qualquer outra bobagem do gênero, e o Jorge acreditava.  Lá ia ela agüentar as chatices e outras coisas mais. Ainda bem que existe whisky. Era só incentivar ele beber que ele logo dormia e quando acordava não se lembrava de quase nada, então era só fantasiar um pouco que ele acreditava que tinha sido um amante incrível.
(continua)







HELENA
A mulher do Jorge tem cinqüenta anos e também se considera uma mulher de sorte. Herdeira da metade da fábrica de parafusos, uma empresa rentável que não lhe dá a menor preocupação, pois Jorge toma conta com competência, amor e carinho. Tem dois filhos adultos, saudáveis. Tem um bom emprego e... um amante. E que amante! Jovem, bonito, atlético. Trabalha em medicina esportiva, um trabalho que exige que faça muitas     viagens, inclusive para outros países. (ele fala outras línguas).
Ao contrário de Jorge, ela não está apaixonada, está só exercendo o direito de se divertir, mas o jovem está muuuito apaixonado. Morre de ciúmes, até do Jorge. Quer que Helena se divorcie para ficar com ele! Coisa que não lhe passa pela cabeça, fazer. A diferença de idade não é tão gritante como a diferença do Jorge e sua “namorada”, mas Roger é mais novo que ela e no futuro esta diferença vai pesar. Sem contar que ela não o ama, então não é o caso de acabar um casamento de anos por uma aventura.
Helena tem o melhor emprego que alguém poderia querer na atual circunstancia: é corretora de imóveis. Pode ir a qualquer lugar com qualquer pessoa sem chamar atenção. Inclusive foi assim que conheceu Roger, mostrando um apartamento que ele acabou comprando.
JORGE
      Com cinqüenta e cinco anos bem vividos, como ele mesmo dizia, Jorge se considerava um homem de sorte.
       Nasceu de família pobre e hoje era sócio da fábrica de parafusos do seu falecido sogro. Na verdade era casado com a sócia da fábrica. O outro sócio era seu cunhado, Adalberto que na opinião de Jorge, um sujeito metido a grande coisa, que só porque fez faculdade e trabalha numa multinacional se acha melhor que os outros.
Jorge trabalha muito. É o primeiro a chegar e o último a sair. Comanda tudo com pulso firme. Ama aquela fábrica! Começou na função mais subalterna e hoje é o dono! Quer dizer, é casado com a dona e cunhado do outro dono. Mas na maior parte do tempo ele não se lembra desse detalhe. Afinal é ele que cuida de tudo, desde a produção até a venda. Supervisiona, pois a fábrica cresceu tanto que foram necessárias várias mudanças, criação de departamentos com seus respectivos encarregados, gerente disso e daquilo, departamento de pessoal e os cambal. Mas apesar de ter chefes e gerentes às pencas ele é o manda chuva! Delegar não é com ele.
Jorge está muito feliz, e não é com o lucro da fábrica. Jorge está apaixonado! E acredita piamente que é correspondido. Janaina é o nome da sua paixão, e ela tem vinte e três anos, dois anos a menos que sua filha.
Tem horas que ele nem acredita como é possível uma moça como Janaina gostar dele. Gostar é pouco, ela o venera, admira, respeita, bem o contrário da sua mulher que o vê como um marido qualquer. Não o valoriza, talvez por não ter um diploma de faculdade, por não falar inglês como Adalberto
O tempo que ele passa com Janaína é só felicidade. Ela está sempre feliz, acha graça em tudo que ele fala, não economiza elogios!  Já Helena, sua mulher, nem quer ouvir falar em parafuso, porca ou arruela. Não quer saber se faltou funcionário ou se o sindicato está atrapalhando.
Jorge acha que o motivo de Janaína ser tão maravilhosa é por estar apaixonada, porque a vida dela não é fácil, coitada. Órfã de pai, mãe rigorosa e padrasto terrível! E com tudo isso ela é uma filha amorosíssima e preocupada com toda a família. Motivos não faltam, pois como ficam doentes os parentes dela! Cada doença complicada! E pra piorar ninguém tem plano de saúde. A mãe dela tem uma doença rara que aflige a pobre filha. Janaína tem medo que a mãe morra e ela tenha que ficar morando com o padrasto, pois pra complicar, tem irmãos menores e ela amorosa como é, jamais os abandonaria.
(continua)

Depois de ser atacada duas vezes, pensava estar imune a outro ataque. Acreditava que tinha aprendido me prevenir. Sempre examinava minhas roupas antes de me vestir, esquadrinhava os ambientes em que eu ia entrar e mantinha minha casa livre de insetos. Com isso, relaxei e me dei mal.

O terceiro ataque foi na hora que eu estou mais vulnerável: de manhã. Aconteceu assim:

Na época eu tinha um carro velho que prefiro não falar a marca nem o modelo. A parte mecânica do carro funcionava bem, mas tinha alguns defeitinhos. Um dos defeitos era que a janela do motorista não fechava até o fim, ficava exatos 2 dedos aberta. Coloquei as crianças e suas mochilas dentro do carro, abri o portão, entrei no carro e quando já estava na rua aparece no parabrisa uma maldita lagartixa. Pra piorar ela era transparente. Eu nunca tive coragem de olhar diretamente uma lagartixa e agora tinha uma no parabrisa do meu carro correndo de um lado para o outro desfilando sua transparência e me deixando apavorada de medo que ela entrasse pelo vão da janela. Não queria assustar as crianças e ao mesmo tempo não podia fingir que estava tudo bem com uma lagartixa enlouquecida com a possibilidade de ir para a escola, e além do mais as crianças sabiam que eu tinha medo de lagartixa. Dirigia bem rente a calçada, na esperança que um galho de árvore a arrancasse dali, mas ao mesmo tempo esse mesmo galho poderia forçá-la a entrar pelo vão da janela que eu tentava em vão fechar. Nessa tentativa de me livrar da lagartixa eu desviava do meu caminho habitual e as crianças não paravam de falar que iam chegar atrasados. Eu não podia simplesmente descer do carro sem me livrar da lagartixa, pois nunca teria certeza se ela havia entrado pelo vão da janela ou não. Em um ponto de ônibus que tinha muitas pessoas eu parei e comecei a gesticular pra chamar a atenção de alguém pois a buzina também não funcionava. Um trabalhador que estava esperando o ônibus veio me ajudar, acreditando que eu queria uma informação. Apontei a maldita e fiz um gesto com as duas mãos juntas e a minha cara de pavor. O pobre homem levou um susto, mas não me desapontou, pegou a maldita pela cintura e jogou no meio da rua. Que alivio! Tive vontade de dar um abraço no meu herói, mas só falei um muito obrigada do fundo do coração. Voei pra escola, lamentando não poder descer pra dar um abraço na pessoa que me salvou. Eu estava de camisola.
Cassandra é uma mulher organizadíssima e metódica ao extremo. Ela é daquelas que fazem lista de supermercado em três vias. Sua casa é um modelo de perfeição que nenhuma sogra ousaria criticar. Na cozinha, seu armário de potes plásticos se parece com o catálogo da Tupperware: todos estão com suas respectivas tampas e expostos por ordem de tamanho e formato. As gavetas de tampas, talheres e panos de prato segue a mesma ordem, assim como todas as outras dependências da casa. Visitar esta casa é como estar dentro de uma revista de decoração. Todo esse empenho é acompanhado de discursos sobre a importância de manter tudo em ordem e severas críticas aos seus três filhos e o marido por não valorizarem tanta organização.

Sua casa não é só organizada, é imaculadamente limpa. Micróbios e bactérias são a sua obsessão. O primeiro Vaporetto vendido no Brasil foi Cassandra que comprou, é como se fosse uma extensão do seu braço. Comprou também máquina de lavar louça, não por comodidade, mas porque ficou sabendo que além de lavar, também esteriliza a louça.

De ácaro tem um ódio mortal, tanto que gostaria de um confronto pessoal como do Batman e Pinguim.

Quando percebe que alguém da família vai tomar banho, ela literalmente avança nos seus pés e arranca suas meias, pois não admite a hipótese de lavar os pares de meias separados, para que não se extravie um pé da meia. Todo mundo já teve pelo menos um pé de meia, inexplicavelmente extraviado, já faz parte do nosso cotidiano. Alguém até já escreveu uma história explicando que as meias perdidas vão para o Reino Perdido do Beleléu, mas nesta família não existe a menor chance disso acontecer.

Cassandra não se senta para as refeições com a família, fica rondando à mesa e ao menor descuido: vapt, tira o prato, os talheres e o copo pra lavar, sabe-se lá se é de medo das sobras entrarem em decomposição. Em sua opinião, além de uma refeição balanceada a higiene na cozinha é fundamental.

Com todos estes cuidados a família raramente adoece, mas quando isto acontece o médico é bombardeado com perguntas referente a causa da doença que está sendo tratada e suas possíveis complicações. Logicamente os cuidados são redobrados.

Cassandra lê tudo sobre saúde. Conhece de cor todas as doenças, as virais e bacterianas. Das doenças virais sabe toda forma de contágio. A propósito disto também faz discurso para a família. Ninguém reclama mais, não adianta. Seu marido apenas balança a cabeça e sorri.

Enfim as crianças cresceram e foram embora cuidar das suas próprias vidas. Um dos meninos hoje é médico. Um dia ele mostrou um ácaro para sua mãe no microscópio, ela ficou impressionada! E pensar que ela tinha lutado tanto (e vencido) com este tipo de monstro cheio de pernas. Seu outro filho trabalha com estatística. A sua filha casou-se com um médico e mora num destes países subdesenvolvidos fazendo trabalho filantrópico. Escreve longas cartas contando tudo sobre seu trabalho e finaliza falando que sua mãe não viu nada de vírus e bactérias comparando com o que eles têm lá.

Seu marido também foi embora com Larissa, uma jovem que usa um piercing no umbigo e outro na sobrancelha, algumas tatuagens e um topete azul. Larissa não sabe a diferença entre um vírus e uma bactéria.

Hoje Cassandra dá cursos e palestras sobre método e organização para mulheres como eu, como você. Eu por exemplo, faço minha lista no carro, a caminho do supermercado. Espero que isso não acrescente pontos na carta de motorista. Meu armário de potes plásticos é um caos, que é uma sorte quando alguém consegue encontrar um pote e sua tampa. Minha casa é muito limpa, mas desconsidero a existência de germes e bactérias. Quanto as meias eu acho que deveria haver uma lei obrigando aos fabricantes de meia incluírem um pé a mais em cada par.

Guardem bem este nome: Cassandra. Qualquer dia nós vamos assistir a uma entrevista dela no Programa do Jô, divulgando os livros sobre Organização e Método que com certeza ela está escrevendo.

Abril de 1.998
Vocês já sabem que eu não sou medrosa, mas não quero que pensem que tenho mania de perseguição. Sou perseguida mesmo.

O segundo ataque aconteceu assim: eu estava sentada na varanda encapando os cadernos dos meus sobrinhos. Como não tenho mania de perseguição, não examinei as paredes e o teto antes. Distraída entre cadernos, plásticos e durex não percebi que havia uma atividade sexual travada por criaturas monstruosas logo acima da minha cabeça. Meu cabelo era bem comprido. Muito cabelo e crespo. O lugar ideal para duas lagartixas apaixonadas. Elas se atiraram no meu cabelo e eu disparei para o quintal gritando. Até aquele dia eu acreditava que a dona Laurinda, a senhora que trabalhava para a minha irmã, era a mulher mais corajosa que eu conhecia. Acreditava também que ela me amava muito. Duas decepções no mesmo dia. Ela não enfrentou os monstros e ainda riu muito da minha situação. Meus sobrinhos ficaram apavorados, no começo sem entender o que estava acontecendo, depois entendendo e assustados.

Não tenho certeza como as malditas caíram talvez os meus gritos tenham esfriado o entusiasmo e elas tenham resolvido procurar um lugar mais tranqüilo. Estava aliviada por ter me livrado das monstruosas criaturas, decepcionada com a dona Laurinda e com nojo do meu cabelo.

Passei a tomar mais cuidado, examinava sempre as paredes e o teto antes de entrar em algum lugar, mas isso não impediu O TERCEIRO ATAQUE.
O casamento tem significado diferente para homens e mulheres.

Para a mulher significa ficar mais tempo junto da pessoa amada, liberdade pra praticar sexo e a segurança de ter um herói para defendê-la em caso de necessidade.

Para o homem significa ter alguém exclusivamente para cuidar do seu bem estar, das suas roupas, suas coisas e preparar seus pratos prediletos. De preferência alguém que não exija atos de heroísmo. Significa também a perda da liberdade sexual.

No começo do casamento a mulher até gosta de brincar de casinha, organizar a gaveta de meias, organizar os papéis do marido. Como a mulher moderna não faz curso de culinária, os pratos prediletos dele passam a ser o terror do casal.

O homem gosta de ficar com os amigos e não ter hora de voltar pra casa, o que entra em conflito com a vontade da mulher que é ter o amor da sua vida sempre a seu lado.
Nas primeiras vezes que o marido chega tarde, encontra a mulher na maior crise, dividida entre pensar que seu amor sofreu um acidente, ou que ele está numa boa com seus amigos e nem se preocupou em avisar. As duas hipóteses a aterrorizam igualmente.
É claro que não aconteceu nenhum acidente, é claro que ele estava com os amigos e é óbvio que ele não imaginou que precisava avisá-la.
Depois de convencê-lo que deveria ter a consideração de avisar toda vez que precisasse demorar, que não deveria preferir ficar com os amigos, ela o perdoa, acreditando que está tudo resolvido.

Depois de muitas recaídas, ela não pensa que aconteceu um acidente, torce por um. Não um acidente fatal, mas umas costelas quebradas e uns arranhões já servem.
Enfim o jeito é se acostumar com este hábito do marido e arranjar uma distração: gato ou cachorro? Como cachorro é o melhor amigo do homem a opção é um gato. Enquanto é novidade, tudo bem, mas com o tempo e o temperamento independente do gato, isto não a satisfaz, então ela chama o marido para conversar sobre a relação. Nesta conversa ela se expõe por completo: se queixa da solidão, da decepção e critica o comportamento dele. Ele aproveita pra criticar a comida dela, o seu gato e diz que se sente sufocado. Ninguém fala em separação, ambos procuram uma solução. Decidem que o que está faltando é um filho.

Começam o planejamento: escolha do médico, exames, escolha do hospital, da decoração do quarto, a compra do enxoval, decidir quem serão os padrinhos. Enquanto ela está envolvida nestas atividades quase nem percebe que ele continua na mesma vida de sempre.
Nasceu o bebê! A felicidade é total, compartilhada com avós, tios e amigos. O pai se sente muito importante e responsável. A mãe acha que é a melhor coisa que podia acontecer. Enquanto é novidade, tudo bem, mas com o tempo ela percebe que não é brincar de boneca, é dedicação em tempo integral. O marido aproveitando a nova ocupação da mulher continua com os velhos hábitos e mais alguns. Ela cada dia mais apaixonada pela criança, preocupada com sua nova aparência modificada pela gravidez e totalmente sem esperança que seu marido dedique tempo integral à família pede conselho pras amigas. Umas dizem que ela deve se conformar, pois casamento é assim mesmo e poderia ser até pior. Outras dizem que ela deve procurar uma ocupação, uma distração. Outras radicalizam, dizendo que ela deve se separar. Nem um dos conselhos satisfaz. Conformar-se, jamais, distração e ocupação para quem tem criança pequena é quase impossível e separação na sua opinião é quando não se ama mais ou em caso muito grave. Uma nova gravidez! Que idéia genial! Com dois filhos vai ser uma família de verdade. Mais responsabilidade, menos tempo pra farra. O primeiro filho foi uma decisão dos dois, mas esta gravidez deverá ser uma surpresa.

O marido dividido entre o trabalho, os amigos e o filho nem percebe que a barriga dela está crescendo, afinal ela já estava gordinha. Quando ele percebe, quase não acredita e demonstra claramente que está chocado e não surpreso por ela ter decidido ter um filho sem consultá-lo. Ela surpresa com a reação dele fala que foi sem querer, que o anticoncepcional falhou e que quando percebeu, ficou com receio de contar.

Nasce o segundo bebê. Que bom que ele é saudável. Que pena que ela está mais gorda. Fraldas, mamadeiras e o inevitável ciúme do irmãozinho. Muito trabalho para a mãe, mais responsabilidade para o pai que descobriu que para ter um tempinho com os amigos é só diminuir o tempo com a família. Afinal uma casa com duas crianças pequenas e uma mulher rabugenta não é atrativo para nenhum marido.
Ela percebe que a idéia não foi tão boa assim, mas está totalmente apaixonada pelas duas crianças.

Hoje eles estão separados e ela está brigando por aumento de pensão pras crianças. Quanto mais dinheiro ele investir nos filhos, menos vai sobrar pra farra.
1.990
TIO PERCIVAL

Todo mundo conhece alguém como meu tio Percival.

Ele nunca teve a carteira profissional assinada: ninguém nunca foi meu dono! Gosta de se gabar. Eu trabalho é com a cabeça, é outra frase predileta. Vive de intermediar vendas. Entende de quase tudo, pois lê todos os jornais, assiste todos noticiários. É sempre consultado sobre os mais diversos assuntos. Está sempre disponível para acompanhar alguém em viagem ou no hospital, levar documentos, entregar convites. Adora resolver problemas por telefone fazendo-se passar por advogado.

Gente como tio Percival geralmente não se casa e quando se casa é com alguém tão sem personalidade que ninguém consegue lembrar o seu nome. É preciso tomar cuidado com pessoas como ele, pois estão sempre com tempo livre e como são observadoras e acham que sabem de tudo, gostam de dar palpites até no tempero da comida de quem está cozinhando.

Sempre muito simpático,tio Percival faz questão de estar bem com todo mundo, pois sempre precisa de um fiador, um empréstimo em dinheiro ou de um carro. Pessoas como ele nunca ficam rica, sempre tem o mínimo necessário pra viver.

Tio Percival tem sempre um ótimo negócio em vista, mas falta capital e quem o conhece não está disposto a financiá-lo. Estas pessoas ele define como “sem visão”.
Ele é sempre convidado para todo tipo de festa de família, desde batizado até bodas. Não gosta de amigo secreto, talvez porque seja obrigado dar presente.

Algumas pessoas acham que esse negócio de trabalhar com a cabeça seja pretexto pra quem não tem coragem de trabalhar.

Este ano a festa de natal da família vai ser na minha casa, já confirmaram presença o tio Percival e, como é mesmo o nome da mulher dele?
1.997
Não sou uma pessoa medrosa, mas coragem tem limites. Um dos meus limites é lagartixa. Até o nome é aterrador, mas não pensem que me preocupo com elas 24 horas por dia, apenas quando alguma resolve visitar a minha casa ou me atacar. Não gosto que as pessoas se arvorem em defensoras desta praga, dizendo que elas “limpam” a casa caçando insetos. Pra que existe inseticida? Insistem em dizer que elas não fazem mal a ninguém. A mim faz, elas me perseguem. Três vezes fui atacada por estes monstros, nem sei como sobrevivi.

A minha primeira vez foi no cinema. Eu tinha dezessete anos. Fui com minha irmã e meu cunhado visitar minha outra irmã que tinha se mudado para outra cidade. Isso deveria bastar, mas a minha irmã quis ir ao cinema. Deixei minha roupa separada em cima da cama, enquanto tomava banho. Era um vestido abotoado na frente até a cintura e com um cinto largo.

Quando nos sentamos no cinema e a luz se apagou, senti uma coceira nas costas na altura de cintura. Cocei. Toda hora sentia como se tivesse um fiapo ou um fio de cabelo me incomodando. O filme começou e eu não conseguia prestar atenção, por que tinha que sentar na ponta da cadeira pra me coçar. Minha irmã já estava incomodada com a minha falta de modos. A comichão estava aumentando e pedi pra minha irmã coçar pra mim. De má vontade, olhando pra tela ela deu uns apertões e ainda falou que iam pensar que ela estava dando corda em mim. Não achei a menor graça, principalmente porque depois dos apertões dela a situação piorou. Sem falar nada, peguei-a pela mão e a levei ao banheiro. Ela não estava entendendo nada. Eu estava apavorada, pois sabia que alguma coisa viva estava debaixo do meu vestido. Devo ter falado isso pra ela. Mal entramos no banheiro, antes mesmo de fechar a porta eu tirei o vestido e joguei no chão, lá estava a infeliz avariada, principalmente pela inabilidade da minha irmã. O que era suspeita se transformou em uma terrível realidade: uma lagartixa horrorosa tinha entrado no meu vestido enquanto eu tomava banho, e ficou presa no cinto. Claro que eu gritei, chorei assustando as moças que tinham se enfiado no banheiro pra fumar. Claro que a minha irmã morreu de rir. Eu não queria mais vestir o vestido. Na verdade não queria minhas costas também. Minha irmã estava muito empenhada em continuar assistindo o filme e não ficar com uma pessoa histérica e nua no banheiro. Fingindo se importar comigo revistou o meu vestido e livrou-se dos vestígios da praga tentando me convencer a colocar o vestido. Toda hora entrava alguém no banheiro e ficava sem entender o que estava acontecendo, pois a estropiada tinha se evadido toda ofendida. Sem alternativa vesti o vestido e voltamos pro cinema. Não tenho a menor idéia que filme estava passando, também não sei se ficamos até o final. Provavelmente fomos embora antes do final, pois minha irmã estava ansiosa pra contar o que ela chamou de vexame.
Agora me digam que inseto a maldita estava caçando dentro do meu vestido que eu tirei da mala, passei e coloquei esticadinho em cima da cama?
31/12/09
Já fui a muitos velórios e todos são praticamente iguais: Primeiro, o choque ou alívio, dependendo da causa da morte. Depois a parte prática: A escolha do caixão, decidir onde vai ser o velório e o enterro. Também é preciso avisar amigos e parentes. Doação de órgãos nem se cogitam.

Geralmente a pessoa que vai comprar o caixão é a menos indicada para escolher. Com o pretexto que depois de morta a pessoa não precisa de mais nada, que está sofrendo muito com a perda, para ficar se preocupando com bobagens, como luxo e aparências e devido ao alto custo do caixão e acessórios, escolhe-se qualquer coisa entre o mais barato e o mais ou menos. As pessoas encarregadas de comunicar o falecimento, despreparadas, muitas vezes esquecem-se de avisar alguns, avisam duas ou três vezes a mesma pessoa.

Para se marcar a hora do enterro ou cremação, precisa se levar em conta o tempo que demoram em chegar os parentes que moram em outras cidades ou estados. E a pessoa que está cuidando desta parte, como eu falei, não é a mais indicada, não se preocupa com estes detalhes e transforma a chegada ao velório numa verdadeira gincana ou, dependendo do estado das ruas num rally.

Decidido o local do velório, para lá se dirigem os amigos e parentes. No começo é aquela choradeira, contam os detalhes mórbidos da coisa para as pessoas que querem saber como tudo aconteceu. Mais calmos começam a relembrar como era a pessoa em vida; é o momento da ternura, de alguns sorrisos. Os defeitos e falhas de caráter são propositadamente esquecidos, ou quando muito, usam-se eufemismos para mencionar estas características. Esta é a primeira fase do velório.

Na segunda fase, os presentes começam reparar uns nos outros: Como a Fulana está gorda, como Sicrana está velha, acabada! Será que Beltrano vem? Uns dizem, claro que sim, outros, claro que não, fazem até aposta. Alguém nota a falta de algumas pessoas que deveriam ter vindo. Será que foram avisadas? Ninguém tem certeza, afinal é um momento de dor, uma situação traumatizante. Neste estado ninguém é capaz de tomar todas as providencias. Já é madrugada então é melhor esperar amanhecer para telefonar, para que possam pelo menos comparecer ao enterro.

É nesta fase que os presentes falam de suas próprias doenças, suas cirurgias, bem ou mal sucedidas. Tomam decisão de parar de fumar, praticar exercício, se alimentar direito. O assunto vai se acabando, o sono chegando, é preciso andar um pouco pra despertar. Vão dar mais uma olhada no(a) morto(a). Mais conformados, reparam primeiro na aparência da pessoa, depois no que está vestindo, nas flores, no caixão, na coroa, no castiçal, etc. e vem a pergunta fatal: Quem escolheu o caixão? Se for muito simples, criticam dizendo que é sovinice, se é luxuoso, dizem que estão querendo compensar o que não foi feito em vida para a pessoa.

Madrugada em curso, todos com fome, mas sem coragem de comer, pois o lugar é desagradável e o bar é péssimo.
Começam a chegar os parentes de longe. A choradeira recomeça, os detalhes dos últimos momentos são contados novamente, a hora da ternura e a reprise da segunda fase.

Amanhece o dia. Quem pode vai para casa tomar banho, se vestir para o enterro e tomar café.
É de manhã que costumam vir para o velório, as pessoas que não têm parentesco, mas tem amizade ou algum tipo de relacionamento com o(a) morto(a) ou seus familiares. Em geral não demoram muito, pois não encontram ninguém conhecido, pelos motivos acima. O jeito é assinar o livro e ir embora.

Aproxima-se a hora do enterro e os parentes de muito longe ainda não chegaram. É a luta contra o tempo. Às vezes é preciso subornar os coveiros para adiar um pouco o enterro, para dar tempo de chegarem os parentes. Isso quando o enterro é no mesmo lugar que o velório. Se não for, os parentes em trânsito, não sabem se vão para o velório ou direto para o cemitério, muitas vezes se perdendo pelo caminho por não conhecerem direito a cidade.
Como é inevitável, enterra-se o(a) morto(a) e vão para a casa fazer a partilha.

Por causa disso tudo que eu estou organizando o meu velório e aconselho que você faça o mesmo. Não me venha dizer oh! Que horror! Que você não se importa, que depois de morto tanto faz, porque eu não acredito. Tenho certeza que você ficou assistindo pela televisão o velório do Ayrton Senna, da Lady Di, do Felinni. Você se importa sim, só não sabia que era possível.

Meu velório ainda não está todo planejado. A cada dia acrescento alguma coisa, mudo outra, afinal tenho muito tempo.
Meu caixão quero de madeira laqueada, falta escolher a cor. Por dentro quero que seja acolchoado e forrado de veludo ou cetim vinho. Farei duas roupas, uma de inverno e outra de verão, mas terá que ser em tom claro para contrastar com a cor do forro do caixão.

Para o velório quero música o tempo todo, selecionadas é claro. Em algum momento será música ao vivo. Estou pensando no Edson Cordeiro se estiver livre no dia. É preciso definir uma segunda e terceira opções.

Estou pesquisando alguns lugares onde se dará o evento. Sugeriram-me o pequeno plenário do Ibirapuera que cabem cinco mil pessoas; achei um pouco grande, pode dar problema na acústica. O lugar escolhido deverá ter estacionamento. Tenho que me decidir entre manobristas e serviço de ônibus saindo de várias partes da cidade, como fazem na época da Fenit e Couro Moda. Talvez tenha que ter os dois serviços. Também é preciso colocar faixas pela cidade, indicando o local, como nos dias de corrida em Interlagos.

Para a decoração não poderá ser nada menos que orquídeas de todas as cores e variedades.

Quero um serviço de Buffet que será servido em uma sala à parte. O cardápio ainda não escolhi, mas com certeza não terá coxinha ou pastel. O cheiro de fritura é insuportável.

O local deverá ter vestiário, para que as pessoas possam se recompor para o enterro.
Quero um telão passando os melhores momentos da minha vida.

O discurso de encerramento estava pensando no Cid Moreira, mas acho que ele morre antes de mim. Quem sabe o Tony Ramos...

Tenho ainda que organizar a lista de convidados. Sim, porque não quero que ninguém seja esquecido, mas também não quero nenhuma pessoa indesejável, que vá só para ter certeza que eu morri, ou para candidatar-se à minha vaga. Por via das dúvidas, vou fazer duas listas: uma para as pessoas convidadas e outra para as pessoas proibidas de comparecerem. Na lista de pessoas proibidas está o Augusto, meu sobrinho. Ele não é uma pessoa indesejável, mas ele tem um talento natural para fazer as pessoas rirem, e não quero meus convidados às gargalhadas no meu velório.

Vou deixar uma pessoa de confiança encarregada das últimas providencias e mais três para supervisionar para que não hajam falhas.

É lógico que para que tudo saia perfeito, é preciso deixar tudo combinado com antecedência. Por exemplo: O Buffet escolhido tem que estar ciente desde já do tipo de evento, pois não tem data para acontecer. O mesmo se dá com a floricultura, os músicos, o serviço de ônibus e manobristas.

Para entrega dos convites, nem pensar no correio, não dá tempo, o melhor é contratar motoboy.

Vou doar meus órgãos e quero ser cremada, além do que a sala de cerimônias do crematório e muito bonita, parece um teatro de arena.

Então é torcer para que o fato não ocorra durante a Copa, Olimpíadas, ou Eleições, por motivos óbvios.

Se você quiser aproveitar a minha idéia, esteja à vontade. O seu evento pode ter a sua cara. Você pode contratar o Tiririca talvez, para o discurso pode contratar o Asa Branca, pode ter até Ôla. Você é quem decide, ou deixa por conta de algum parente e corre o risco de ser velado num lugar cheio de gatos, que de madrugada dão miados horríveis.
Quando você está solteira é impressionante o interesse dos amigos e parentes para te arranjar um namorado. Todo mundo conhece alguém ou tem um primo, tio, cunhado que acham que é sob medida pra você.

Quando minha amiga Irene falou que ia me apresentar o seu primo, eu pensei: ela é mais que amiga, quer nos tornar parentes. Quando ela me falou das qualidades, da situação financeira eu o imaginei um príncipe encantado. Quando eu o conheci, percebi que ela era mais amiga do seu primo do que minha.

Eu o conheci em uma festa, onde todas as pessoas estavam bem vestidas e perfumadas. Ele se destacava na multidão; a roupa que ele estava vestido parecia ter sido comprada no saldão de algum brechó. O corte do cabelo eu não sei em que época foi moda. Me recusei a olhar o sapato. Para piorar, minha “amiga” provavelmente já tinha falado sobre mim, pois ele agiu como se tivesse tudo acertado entre nós. Posou de meu par na festa, espantando possíveis interessados. Conversando com ele, já que não havia outro jeito, fui confrontando as qualidades que Irene falou que ele tinha com o que eu podia perceber. Ela havia falado que Henrique era uma pessoa sem afetação ou modismo. Eu percebi que ele era desleixado e antiquado. Ela falou que ele era econômico, eu descobri que era sovina. Fiquei sabendo que ele tinha o hábito de se hospedar com os parentes. Era por isso que faziam tanta questão de casá-lo. Uma mulher desesperada veria nele um diamante bruto, pronto pra ser lapidado. Não era o meu caso, mas infelizmente parecia que ele estava nesta situação, pois grudou em mim de tal forma, que estava ficando difícil me livrar dele. Principalmente porque eu não queria magoar minha amiga.

Não pensem que ele me mandava flores ou e mail. Não mandava flores porque romantismo não era a sua principal característica e custa caro. Não mandava e mail, pois achava que computador era um modismo sem propósito, que logo ia passar, então não valia a pena se interessar.
Henrique aparecia com freqüência na frente da empresa que eu trabalhava, com suas roupas despojadas. Além de me matar de vergonha diante dos meus colegas, não me convidava para jantar nem ir ao cinema, propunha me levar pra casa, tentando dar um ar romântico pra coisa. Apesar de cansada e com fome eu sempre inventava compras no shopping, pensando que isso o espantaria por medo de se sentir obrigado a pagar as compras. Não adiantava, pois ele ia e ainda dava palpite nas minhas compras.

Irene sempre me ligava pra saber a quantas andava o que ela chamava de romance, e como eu falava que não havia romance ela não acreditava e ainda ficava magoada por eu não fazê-la minha confidente

Antecipei minhas férias e viajei. Como não era temporada, só tinha casais aposentados ou família com criança pequena. Um tédio. Quando retornei, lá estava ele com as mesmas roupas, e a mesma conversa chata de sempre. Mudei a hora de sair do trabalho e o número do meu telefone, mas ele não demorou descobrir. Resolvi mandar currículo para outras empresas na esperança de me livrar da sua presença incômoda.

Meus colegas não me convidavam mais pra sair depois do trabalho e nos fim de semanas por me julgarem comprometida. Quando eu os convidava, sempre tinha algum engraçadinho que perguntava se eu tinha brigado com o “tigrão”. Não adiantava dizer que eu não namorava tal pessoa, todos debochavam, pois o viam sempre me esperando e telefonava todos os dias. Diziam que não fazia sentido eu negar, que eu deveria deixar de ser ciumenta e convidá-lo pra sair com a turma.

À noite eu custava dormir, procurando uma forma de me livrar do Henrique. Pensei em fazer intercâmbio, mas a hipótese de morar em um país de língua estrangeira e costumes estranhos me desanimou. Achei que se eu mudasse de casa ficaria livre dele, seria a solução ideal. Assim que mudasse de emprego, mudaria de casa. Dormi com esta resolução e sonhei que estava me mudando para uma enorme casa com muros altos e segurança armada. Os carregadores estavam tirando meus móveis do caminhão. Um dos carregadores me perguntou: onde eu ponho isso? “Isso” era o Henrique, com seu sorriso e sua roupa fora de moda. Acordei suando e apavorada. Mais um plano que não daria certo.

Já que meus amigos não podiam me ajudar resolvi recorrer aos conselhos da minha mãe, apesar de não ter mais idade de colo. Contei tudo: como o conheci, como ele era e como estava tornando minha vida impossível. Minha mãe com a “sabedoria” das mães, falou que eu estava sendo muito exigente, que devia estar exagerando ao falar dos defeitos do Henrique. Falou também que quando ela conheceu o meu pai, ele não era a maravilha que é hoje, (não consigo imaginá-lo pior), que muitas vezes cabe a mulher a tarefa de moldar o homem e fazê-lo ao seu gosto. Me senti órfã.

Continuei minha vida, tentando driblar o Henrique, aguardando um chamado de outra empresa e escolhendo um novo lugar para morar, mas tudo sem sucesso.
Uma idéia começou a tomar forma na minha cabeça: a do diamante bruto! Reconheço que era uma solução desesperada, mas era como eu me sentia em relação a minha atual situação. Calmamente tracei o plano completo. Se não desse certo, seria apenas mais um que falhou.
Comecei por descobrir a data do aniversário do Henrique. Não economizei no presente: Comprei roupas de boa qualidade e moderna para presenteá-lo. Também comprei sapatos. Marquei hora no cabeleireiro e combinei o tipo de corte que ele deveria sugerir para o Henrique. Teria que inventar uma desculpa para levá-lo. Tirei uma tarde livre e contei pra ele. Claro que ele estava me esperando e me acompanhou sem perguntar aonde eu iria. Não estranhou eu ir ao cabeleireiro e se dispôs a esperar. Falei pra ele aproveitar e cortar o cabelo para não se aborrecer de me esperar. Eu pagaria. Nem foi preciso insistir. Depois do cabelo cortado ficou encantado com a sua aparência, disse que estava parecendo um garoto. O cabeleireiro também não economizou elogios. Não era pra tanto, mas confesso que ficou melhor do que eu esperava. Quando saímos do salão, ele estava tão feliz que até estava menos feio, ou mais bonito. Achei melhor dar a roupa e o sapato no dia seguinte. Era melhor aproveitar a felicidade da sua nova aparência aos poucos. Estava sendo muito divertido!

No dia seguinte, dia do seu aniversário, como sempre ele estava me esperando. Entreguei os presentes. Ele ficou numa felicidade incrível, pela lembrança da data e pelos presentes. Adorou as roupas e me chamou de maluca por gastar tanto com ele, pois era óbvio que eram roupas caras. Aproveitei para falar que quando uma roupa era de boa qualidade, ficava com melhor aparência por mais tempo e durava muito mais, portanto não poderia ser considerada cara, valia o que custava. Ele aceitou muito bem a justificativa, talvez por não ser ele quem pagou. Neste dia ele estava apressado pra ir embora, percebi que era para experimentar as roupas e o sapato novos. No dia seguinte ele me ligou para agradecer e falar que tinham ficado ótimas e me convidou pra jantar. Quase não acreditei, depois fiquei preocupada com o lugar onde ele estava pretendendo me levar. Talvez uma pastelaria ou lanchonete. Não era. Me levou a um restaurante decente, será que ele pretendia que eu pagasse? A brincadeira estava perdendo a graça. Para minha surpresa pagou sem reclamar. Uma vitória que eu atribuí aos presentes. Outra coisa que me surpreendeu, foi que as mulheres no restaurante e nas ruas, olhavam pra ele, eu diria, com admiração. E ele estava percebendo e gostando! Achei um tremendo desaforo, pois a idéia do corte de cabelo foi minha, a roupa fui eu quem escolheu.

Nos próximos dias ele estava usando suas antigas roupas e parece que não estava confortável. Falou que achava que estava engordando, pois suas roupas estavam apertando, incomodando. Sugeri de brincadeira que entrasse numa academia de ginástica. A princípio me olhou aborrecido. Ele estava esperando elogio pelo seu físico, ou queria que eu comprasse mais roupas? Depois de pensar um pouco, falou que não era má idéia, pois estava precisando de uma atividade física.

A próxima vez que o vi, já tinha se matriculado em uma academia e me convidou para ir com ele comprar roupas esportivas e tênis. Entendeu direitinho a lição sobre roupas de boa qualidade. Acho que até exagerou, pois eu achava que desistiria logo desta nova atividade. Ficou uns dias sem aparecer, deveria estar todo dolorido. Quando veio, estava cheio de idéias novas. Um verdadeiro senhor saúde. Era um tal de alimentos energéticos, catabolizantes, massa muscular, bebida isotônica, bíceps, tríceps. Felizmente estava com roupas normais, pois nem posso imaginar se ele viesse de camiseta regata, meião e tênis. Dava pra perceber que ele estava dolorido, mas não deu o braço a torcer. Com esta nova atividade ele aparecia com menos freqüência e eu podia tocar minha vida como antes, mas eu já tinha perdido o hábito das coisas que eu fazia antes de conhecer o Henrique, que fiquei meio sem ter o que fazer.

Chegou a época de eu tirar férias e planejei ir para o litoral. Contei pro Henrique e ele achou uma ótima idéia e se convidou pra ir também. Como seria inútil discordar, ajudei-o a comprar roupas adequadas, uma atividade que ele já fazia com prazer. Chegando ao litoral houve discordância sobre a quantidade de estrelas do hotel, pois a mesma teoria das roupas não se aplicava. Então sugeri ficarmos em hotéis separados e para minha total surpresa ele concordou. Percebi que eu precisava ter bons argumentos para cada situação e mais alguns de emergência.

A primeira noite no hotel eu dormi muito mal, acho que estranhei a cama. Imaginei como teria sido a noite do Henrique num hotel com menos estrelas. Acordei tarde, e depois do café fui dar uma volta na praia. Qual não foi minha surpresa ao ver o Henrique rodeado de pessoas, a maioria mulheres, e ele estava falando no seu novo assunto predileto: fisicultura. Todos pareciam muito interessados, as mulheres interessadas demais. Como o assunto não me interessava, fui passear sozinha. Voltei para o almoço e o encontrei bem disposto e muito satisfeito com as novas amizades. Ótimo, assim ele me deixaria em paz. À tarde fui à praia, o Henrique também foi e não demorou aparecerem seus novos amigos. Cervejinha pra cá, camarãozinho pra lá, muito papo furado e muito assanhamento das suas novas amigas. E ele achando tudo muito natural. O cúmulo foi a certa altura da conversa, alguém perguntar se eu era prima ou irmã dele. Fiquei sem saber o que responder e ele teve o desplante de dizer que éramos amigos. Amigos? Essa foi demais! Enfim eu estava livre pra arranjar namorado. Deixei o Henrique pra lá e comecei a olhar á minha volta para ver se tinha alguém que valesse a pena. Não existe lugar melhor pra arrumar namorado do que na praia, mas esta temporada estava fraca. Deve ser por isso que o Henrique estava fazendo tanto sucesso. Resolvi levantar cedo para ver a chegada dos pescadores e lá estava o Henrique correndo na praia com um bando de mulheres com a língua de fora, correndo atrás dele e elogiando sua boa forma. E eu não vi nem um peixe interessante.

Decidi pelas diversões noturnas. Com certeza o senhor saúde não estaria lá. Estava enganada. Suas amiguinhas o convenceram que com sua boa forma física, só uma noitada não o prejudicaria. Não conheci nem um boêmio que valesse a pena. No dia seguinte o Henrique perguntou se eu o ensinaria a dançar, pois ele estava perdendo a oportunidade de se divertir dançando. Recomendei uma escola de dança. Tive vontade de sugerir balé.

A cada dia o Henrique mais se enturmava, se bronzeava, se divertia e até achou quem o ensinasse a dançar. Ao contrário, eu me aborrecia, me chateava, não arrumei namorado e fui muito picada por mosquitos e pernilongos. Terminei as férias mais estressada do que quando estava trabalhando.
De volta a minha casa, recebi finalmente uma proposta para um novo emprego. Fui à entrevista, mas não me interessei. O salário era um pouco maior, mas até eu me adaptar, fazer novas amizades e talvez enfrentar um chefe desagradável, não valia a pena trocar de emprego. Melhor esperar uma proposta melhor.
O Henrique com seu novo visual, seu horizonte ampliado, abriu uma loja de produtos naturais e vitaminas, para os adeptos de culto ao corpo. Claro que ele me pediu para ajudá-lo a escolher o local e fazer a decoração da loja. O negócio foi um sucesso! A loja é freqüentada por homens musculosos e mulheres de barriga de fora e collant cavado.

Hoje ele tem uma cadeia de lojas e continua muito assediado. E é lógico que eu sou a mulher que ele escolheu pra gerente. Sempre que alguém pergunta como tudo começou, ele fala que deve tudo a uma grande amiga, que o ensinou desde a se vestir até a investir em si mesmo. Eu continuo a esperar o meu príncipe encantado, nem que seja com anabolizante.
Bom mesmo era no tempo da minha mãe, que se podia lapidar um diamante bruto e desfrutar do seu brilho.

About